Cabo Verde - Síndrome de Down, ou o cromossoma dos anjos

Não é doença, é uma diferença

Uma alteração genética causada por apenas um cromossoma a mais, que muda muita coisa.

 Mas diferentes somos todos, realçam as associações que trabalham com pessoas com Síndrome de Down. 

Uma diferença muitas vezes mal entendida, que leva ainda ao preconceito e exclusão e para a qual urge formação, sensibilização e respostas integradas e sistematizadas.

 Urge um olhar menos indiferente e ignorante para com estas pessoas tendencialmente “meigas”, “afectuosas”, “divertidas”, entre outras características apontadas por quem com elas lida.




Primeiro vem o luto. O choque e o desespero de se saber que o filho tem uma deficiência. 

A resistência. “O luto da criança ideal”. Depois o processo de aceitação prossegue e vai passando outras fases. Começa a luta. Luto e luta. 

São duas etapas apontadas em todo o processo de aceitação por quem lida com a síndrome. 

 Na família de Carla Varela também essas fases devem ter acontecido, mas o que ela, hoje presidente da Down Amor, melhor lembra é de o irmão, Johnny (que tinha essa condição), ter sido sempre bem recebido na família. 


Nasceu em 74 quando a mãe tinha 45 anos e desde o início se sabia que era diferente, até pelo aspecto físico, mas não conheciam a síndrome. “Não sabíamos o que era”.

 Alguns meses depois, o médico disse à mãe qual o diagnóstico, mas a informação disponível era parca.

 Não é, contudo, preciso saber muito para não discriminar. E isso sempre foi bandeira na família.

 “Nunca discriminamos. Dizer, por exemplo, ‘ele não faz isso porque ele é “doente”, (porque aqui ainda se diz, erradamente, doente)”.

Não o fazíamos”. Johnny viajava, passeava, pertencia a um grupo de escuteiros, era acarinhado pelos vizinhos, tinha amigos. “Há famílias que escondem os filhos com Síndrome de Down, mas nós não fizemos isso”, orgulha-se Carla. Carinhoso e afectuoso como, por norma, as pessoas com esta condição são, Johnny distribuía mimo e abraços, mas também se chateava quando lhe faziam algo que não gostava.

 Como toda a gente, aliás. Sabia, porém, que era diferente e isso deixava-o muito triste. E era diferente também porque a sociedade o via diferente.

  Educação

 Quando Johnny chegou à idade de ir para a escola, começou um grande desafio.

 “A escolaridade dele foi bem difícil”. Até começou bem, lembra a irmã. Teve uma professora de quem gostava, mas esta foi viver para os EUA e Johnny nunca mais conseguiu adaptar-se a outro docente.

 “Não o tratavam como a qualquer outro aluno. Tinha de sentar-se no fundo da sala”, os seus pedidos eram tratados com impaciência.

Era visto praticamente como um intruso e foi tratado como tal. Então, com cerca de 14 anos, “tivemos de o tirar da escola”. Ele próprio sentia que “lá não era lugar para ele”. É uma tristeza que ainda hoje Carla sente pois o seu irmão queria muito aprender. “Comprava jornais todas as semanas, comprava muitos lápis”, era esperto e queria saber.

Mas… a escola não era lugar para ele. Já lá vão alguns anos desde esta má experiência de Johnny e embora hoje a questão da inclusão das crianças com necessidades especiais esteja na ordem do dia – e tenha havido alguns avanços, reconhece-se – a situação ainda está muito longe do desejável.

 Alguns testemunhos ouvidos por Carla Varela dão conta de que ainda existem escolas onde as crianças com esta síndrome passam os dias no intervalo e mesmo quando dentro da sala de aula, são ignoradas … algo não muito diferente do que o seu irmão viveu na década de 80/90.

Contudo, em outras escolas, geralmente dependendo do professor, surgem-lhe também relatos positivos. Intervir junto das entidades escolares para proporcionar uma verdadeira inclusão a estas pessoas é um desígnio da Down Amor, assume.

 Também a Associação Colmeia trabalha a problemática das pessoas com deficiências intelectuais, nomeadamente Síndrome de Down e portanto, com necessidades especiais. Isabel Moniz, uma das fundadoras, é mãe de um jovem com perturbação do espectro do autismo.

Passou por muitas das dificuldades e aflições que passam muitos outros pais cabo-verdianos com filhos com deficiência intelectual: a mesma falta de respostas, a necessidade de terapias, idas às clínicas e hospitais, questões escolares.

 Não hesita ao dizer que a felicidade dos pais é que “os filhos estejam na escola a estudar, tenham um diagnóstico clínico e tenham um lugar de lazer como todas as crianças ditas normais. Isto é o sentimento de todos os pais que têm filhos com deficiência”.

 A nível da educação em concreto, Isabel lamenta que, muitas vezes, os pais retirem a criança da escola quando esta não tem aproveitamento escolar.

 “As crianças devem manter-se na escola. A escola não serve só para ensinar o ABC, a escola deve trabalhar o conteúdo funcional, trabalhar para ter uma formação profissional”, aponta.

 Mas educação ainda está em processo de sinalização, e urge, por exemplo, trabalhar a mudança de mentalidades não só dos professores mas de toda a comunidade.

Ainda há pais que criticam o facto de os seus filhos ditos “normais” terem de partilhar turma com crianças com deficiências alegando que isso lhes prejudica o estudo.

 “Isso não corresponde à verdade”, considera, e lamenta que os pais e professores não aproveitem a presença da criança com necessidades especiais para educar e formar para a solidariedade.


Integração vs Inclusão 


 Ginga Araújo, antiga directora do extinto Colégio Semear, passou por uma situação semelhante à que Isabel conta.

Há uns anos, os pais de um aluno insurgiram-se conta a presença de uma criança com necessidades especiais na mesma turma.

Pela positiva, os outros encarregados de educação repudiaram essa postura discriminatória. Interessante é que na verdade, “várias pesquisas mostram os efeitos positivos no convívio entre crianças com e sem necessidades especiais”.

E mostram ainda que esse convívio traz mais benefício, mais vantagens para as que não as têm.

“Tornam-se efectivamente melhores cidadãos”, aponta. Psicóloga educacional, Ginga tem vários anos de experiência no Educação Especial, área a que o Semear, encerrado no ano passado, dava uma particular atenção.

Conforme explica, no colégio, o funcionamento era o seguinte: a essas crianças era dado um acompanhamento mais individualizado por parte do professor em termos das aulas em concreto, sempre com “o apoio dos próprios colegas”, fazendo-se para isso um intenso trabalho de sensibilização das outras crianças.

 “Para além disso, ela era acompanhada pela professora de Educação Especial (com mestrado nessa área), com um plano educativo individual elaborado por mim e por ela”.

E tinha diariamente acompanhamento psico-pedagógico. Sendo um colégio particular, o número de alunos era menor e, portanto, o acompanhamento podia ser mais diferenciado.

Algo que uma escola pública, onde numa turma (já por si grande) há casos de professoras com quatro crianças com necessidades especiais, dificilmente se consegue replicar.

 Mas, apesar dessas limitações de foro quantitativo há também faltas a nível de formação e sensibilização pessoal dos professores, aponta Ginga, que agora está a trabalhar no ensino público, tentando aplicar as boas práticas da educação especial.

 A percepção diz, e os estudos corroboram, que os professores ainda se sentem extremamente inseguros para trabalhar com crianças com necessidades especiais e um dos motivos é, precisamente, a ausência de formação nessa área, que só agora começa a ser abordada a nível da licenciatura. “Então, naturalmente, os professores não estão preparados”.

Nem os educadores. Nem os funcionários. Falta preparação e faltam também recursos humanos.

 No cômputo geral “ainda estamos naquilo que se chama de integração (e nem sempre, porque às vezes ainda há exclusão), que é quando a criança está na sala de aula, corpo presente, ou seja, não há nenhuma atenção diferenciada para a criança”, explica. Ainda falta bastante para a inclusão…


  Saúde e protecção social 


 A par com a Educação, a saúde é sempre outro pilar no trabalho com pessoas com necessidades especiais, nomeadamente Síndrome de Down.

 Em primeiro lugar, as pessoas com esta alteração genética são propensas a vários problemas congénitos, destacadamente cardíacos e respiratórios.

Em segundo, há todo um conjunto de “especialidades” de cariz mais terapêutico que são importantíssimas para o seu desenvolvimento integral e saudável.

Contudo, as respostas ainda são poucas, geralmente circunscritas aos hospitais centrais, ou a clínicas particulares.

 Nem todos os pais podem recorrer ao privado e mesmo no público as taxas praticadas são consideradas elevadas.

“É necessário rever a resposta da saúde”, exorta Carla Varela, explicando que “para não pagar a taxa, os pais não levam os filhos a fazer as consultas de especialidade que são necessárias”,

Um exemplo são as consultas de psicologia, preteridas apesar da sua importância, principalmente para o adolescente com Down.

 Além disso, há pessoas que estão longos anos à espera de uma declaração médica que afirme que a criança tem a Síndrome, e sem a qual não conseguem uma pensão social. Para Isabel Moniz, os problemas na Saúde começam logo pelo diagnóstico.

Mas o que a presidente da Colmeia destaca é a necessidade de um “acompanhamento mais sistemático.” Para tal é necessário reforçar os Recursos Humanos e estruturas já existentes.

 E também Isabel salienta a questão da pensão e previdência social. “A maior parte das crianças com deficiência intelectual, carentes, não têm pensão social porque persiste a mentalidade da deficiência física”.

Ou seja, desconsidera-se a deficiência intelectual, quando na realidade esta causa tanta ou mais dependência do que física.

Assim, defende, problemas do foro mental ou intelectual deveriam ser “acompanhados e trabalhados em igualdade de circunstância com os físicos”.

 Por exemplo, o INPS só apoia a fisioterapia, muito embora haja todo um conjunto de terapias (como a fonoterapia, entre outras) que são necessárias.

Muitas vezes, portanto, “as crianças e jovens não terão as sessões que deveriam ter, porque os pais não têm recursos para pagar sem a comparticipação.

Então ficam sem as terapias que lhes dão valências para toda a vida”, considera. E quem diz pessoas com deficiência intelectual, diz uma pessoa “normal” que sofra qualquer problema do foro neurológico (como um AVC).

“Neste momento há uma estratégia montada para que a área de deficiência tenha alguma cobertura, mas ainda é preciso fazer muito...”, aponta.

O papel da Colmeia “não é criticar o sistema, é trabalhar com o sistema para arranjar soluções”, salvaguarda.

E entre as respostas que têm sido levadas por esta Associação aos poderes públicos vão no sentido de se trabalhar a saúde, educação e protecção social nos regimes contributivo e não contributivo, de forma articulada.

Pensar o Futuro 


 Estima-se que a nível mundial nasça 1 bebé com Síndrome de Down, uma das anomalias cromossómicas mais comuns, por cada 700 nascimentos. Contudo, há países em que, com o avanço das tecnologias de detecção pré-natal e interrupção voluntária da gravidez, esse número é bem diferente.

É o caso de Espanha onde a proporção ronda os 1 para 2000. Em Cabo Verde não há estatísticas. Também não se sabe ao certo quantas pessoas com Síndrome de Down há em Cabo Verde.

A Down do Amor está actualmente a realizar um estudo para apurar esses números tendo identificado até agora cerca de 50 pessoas, em vários municípios de Santiago e também na Brava e no Fogo.

 “A maior parte está na faixa etária dos 15-34 anos. São jovens, não são crianças”., aponta a Presidente, Carla Varela.

 Contudo há também cada vez mais crianças, o que a leva a dizer que houve um aumento de casos. “Em 2008 já tínhamos feito uma lista, que está a ser actualizada, e além das pessoas que já tínhamos, estamos a encontrar muitas crianças (0-10)”.

 No levantamento da Down do Amor consta ainda um caso raro, uma única pessoa que tem 62 anos.

É a única pessoa que conhecemos” com idade tão avançada, diz O irmão de Carla faleceu, em 2009, aos 33 anos, devido a problemas cardíacos e respiratórios.

Uma idade enquadrada, então, na esperança de vida das pessoas com essa condição. Mas as expectativas, em termos mundiais, estão em expansão acelerada.

Nos últimos trinta anos, a esperança de vida aumentou mais de 2 anos, por ano e está agora precisamente entre 62, 63 anos. Entretanto, não é só a esperança de vida que tem mudado.

O aproveitamento das capacidades também está a ser feito. Em várias paragens há já aposta na integração profissional das pessoas com Síndrome de Down.

Há benefícios, por exemplo, para quem os empregue e cada vez surgem mais áreas onde isso acontece.

 Isso não acontece (ainda) em Cabo Verde. Sequer há despiste vocacional para a formação profissional, como aponta a Colmeia.

E a integração no mercado de trabalho ainda é “nula”, como refere a Down do Amor, salientando que esta é uma vertente onde pretende actuar.

Nesse sentido há a intenção de propor um protocolo com entidades como o IEFP ou a Escola de Hotelaria e Turismo. “São pessoas que têm dotes, que têm algumas habilidades, e alguns que já têm o 6.º ano”.

Mesmo sem escolaridade, actividades como a sapataria ou a cestaria são uma possibilidade. ”Enfim, queremos trazer estes jovens para o mercado de trabalho”, resume Carla Varela. É preciso que a sociedade deixe definitivamente de ver as limitações das pessoas com Down como impedimentos.

E deixe de as ver como “anormais”.


  “Eles são diferentes, mas nós todos somos diferentes”. 


DOWN do AMOR


A Associação das Famílias e Amigos de Pessoas com Síndrome de Down, designada abreviadamente por Down do Amor, foi criada em 2008 e revitalizada em 2018, vai celebrar o dia Internacional da Síndrome de Down com uma marcha de sensibilização com concentração na Praça do Bairro Craveiro Lopes.

O evento vai contar com a presença de várias escolas, que aderiram à iniciativa.

  Colmeia 


 A Associação Colmeia nascida da união de vários pais cujos filhos têm deficiência, mormente deficiência intelectual (Autismo, Síndrome de Down, entre outros) vai assinalar o próximo dia 21 com várias actividades recreativas e culturais. Esta é a primeira de três celebrações previstas.

No dia 2 de Abril a Associação vai celebrar o Dia Mundial de Conscientização do Autismo e no dia 16 de Abril vai festejar o seu 5º aniversário.


  Fonte da Notícia Veja Aqui

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