A alegria nas páginas de um livro

primeiro surgiu a necessidade de pintar, depois a de escrever. Apesar de viver desde os 18 anos praticamente preso a uma cama, Nelson Mendes não perdeu a alegria e foi mesmo capaz de a transpor para as páginas de um livro. Hoje realiza o seu maior sonho com a apresentação de «Roubo de Peixe», durante a 60.ª edição do Natal dos Hospitais, no Centro de Medicina e Reabilitação de Alcoitão. Enquanto pinta mais um quadro com os tons quentes de África - o continente que o viu nascer - Nelson, que tem hoje 32 anos, confessa estar «um bocadinho nervoso» com a cerimónia. Incapacitado de utilizar o braço direito desde a nascença, Nelson viu ser-lhe diagnosticado aos 18 anos um tumor na medula cervical. Foi operado, mas acabou por perder a mobilidade nos membros inferiores. Desde então ficou preso a uma cama. «Farto de passar os dias a ver televisão», Nelson explica que pegou em cartolinas e cartões e começou a pintar. Mas a pintura não foi suficiente para expressar o que sentia, eram necessárias também palavras. «Assim que tiver um computador vou escrever livros, porque eu gosto de inventar histórias», dizia aos amigos.«Roubo de Peixe» é apenas uma dessas histórias. «Estava a ver uma reportagem na televisão, há quatro anos, sobre uma fábrica que poluía um rio», explica. Os pormenores não os recorda, mas lembra-se de ter decidido na altura fazer uma «crítica sobre a poluição». Martelo e Galo são as personagens da fábula que dão voz a essa crítica. Uma história simples, com uma moral que é tantas vezes esquecida um rio poluído não é capaz de fornecer peixes para alimentar os que deles precisam. Nelson começou a pintar sozinho, em 1996, e só mais tarde uma professora o ensinou a «misturar cores». Os tons lembram Bissau, onde nasceu e cresceu. «Sinto saudades do luar e do céu estrelado de África», refere. Hoje, em vez da cartolina, utiliza telas que compra ou são oferecidas pela associação Ponte - que já patrocinou exposições suas. Mas, entre pinceladas de amarelo, Nelson garante «Se por acaso não tiver uma tela à mão eu pinto onde for possível». Foi a simplicidade e a cor dos desenhos deste guineense que chamaram a atenção dos amigos que com ele estiveram internados no Centro de Medicina e Reabilitação de Alcoitão. Hélder pediu um «parecer» sobre o livro - na altura apenas uma «maqueta» - ao poeta Fernando Tavares Rodrigues que reconheceu o «valor enorme» dessa simplicidade e alegria. A enfermeira chefe Graça Góis, do centro de Alcoitão, recorda que foi assim que o livro chegou às mãos de Lourenço de Almeida, do Centro Nacional de Cultura, e mais tarde à provedora da Santa Casa da Misericórdia, Maria José Nogueira Pinto, que decidiu editá-lo. «A função da Misericórdia é devolver às pessoas o máximo da sua dignidade. Mais do que dar dinheiro o importante é dar a mão», disse a provedora ao DN. «O objectivo do centro de Alcoitão é reabilitar, mas não apenas a parte física. Dar a oportunidade aos doentes para criarem coisas bonitas e publicá-las é tão importante para a recuperação como a fisioterapia», acrescentou Maria José Nogueira Pinto. Graça Góis, que diz ter sido ela «o instrumento que permitiu avançar com esta ideia», lembra o ditado chinês «Não lhe dês o peixe, ensina-o a pescar». Por isso, o dinheiro da venda dos dois mil exemplares do livro «Roubo de Peixe», bem como dos postais de Natal que o centro resolveu emitir e onde figuram três quadros de Nelson, revertem totalmente a seu favor. Já anteriormente, o dinheiro das suas exposições possibilitou que fosse operado. Depois de seis meses em Alcoitão, hoje, apesar de preso a uma cama, já consegue deslocar-se em cadeira de rodas. prisão. No seu pequeno quarto no rés-do-chão de uma casa em Rio de Mouro, Nelson continua a pintar. Entre pinceladas mostra-se contudo desanimado com as dificuldades que tem em se deslocar. «É como estar em prisão perpétua com saídas precárias.» Isto porque não consegue sair de casa sem a ajuda dos familiares ou dos bombeiros - que o transportam para as consultas no hospital. «Já pedi aos meus vizinhos que me deixem abrir uma porta directamente da minha casa, mas eles não têm feito nada», queixa-se. Os técnicos da câmara já garantiram que a obra é simples. Se pudesse sair mais facilmente, Nelson garante que gostaria de acabar o 9.º ano para poder tirar um curso de informática e ser mais independente. Por enquanto precisa de ajuda para fazer quase tudo a limpeza pessoal é efectuada pelo apoio domiciliário e a alimentação é feita pela família - o sobrinho, a irmã e a tia. Deitado na sua cama, Nelson pinta os quadros que saem da sua imaginação e sonha que «Roubo de Peixe» possa abrir portas para tirar do armário os outros livros que já tem escritos.

Comentários